Niki de Saint Phalle | Obra

Sempre atraída pelas tensões e pela ambiguidade, a obra de Niki de Saint Phalle vê-se repleta de mulheres, seja numa representação figurativa ou simbólica, assumindo os valores da luta pela igualdade de género. Estas mulheres possuem essa força dos homens, sendo que mesmo as grávidas são viris. São amazonas, montam cavalos, atiram, partem, festejam a vida.

Há uma recusa dos adereços tipicamente femininos bem como os modos de vida normalmente representativos das mulheres. de Saint Phalle escolhe ferramentas que são imediatamente associadas ao mundo masculino, mas que fazem também parte do modo de ser e viver das amazonas, nas quais também se inspirou: setas, facas, machados, navalhas, martelos, espingardas; elementos que nos revelam a sua atracção pela guerra, algo que também não seria comum numa mulher.

Este lado da obra de Niki de Saint Phalle é um pouco do que poderão descobrir no artigo de hoje. Depois de conhecerem o lado mais pessoal da artista, agora verão como os seus ideais e lutas entram em acção no seu trabalho, com uma pequena amostra de alguns dos seus trabalhos mais conhecidos e significativos.

Fotografia por Dennis Hopper, 1963. Fonte: http://www.anyonegirl.com/

Começa em 1960 com Tirs, também conhecidas como Shooting Paintings, obras que juntam Action Painting, Performance, Arte Conceptual e Arte Povera. São telas (lisas ou com outros objectos presos) às quais prendeu balões cheios de tinta e sobre os quais a artista, colegas e público disparam com recurso a uma espingarda. Deste modo a tinta escorre pelo suporte após o tiro, uma influência que ocorre do interesse que tinha no trabalho de Jackson Pollock (1912-1956). Mostra-nos como a destruição pode, por vezes, ser um caminho para a criação.

Embora esta seja uma obra na qual não é mostrado de forma directa a sua luta pela igualdade entre homens e mulheres, a mesma está explícita na forma que a artista usa para expressar a sua fúria para com o poder patriarcal e conservadorismo. Transmite o seu desejo de expressar o seu trauma pessoal (a violação do pai quando tinha 11 anos, a luta para conseguir um lugar aos homens, os seus problemas de saúde, etc.) ao mesmo tempo que comunica os desdém por esses valores, tal como viria a dizer uns anos mais tarde:

Eu disparo contra o meu Papa, contra todos os homens, os homens poderosos, os homens gordos…contra o meu irmão, a sociedade, a Igreja, o convento, a escola, a minha família…

As Tirs foram as responsáveis por conseguir a Niki de Saint Phalle a sua primeira exposição individual (Paris, em 1961) e por fazer dela a única mulher convidada a integrar o grupo do Nouveau Réalisme.

Niki de Saint Phalle, 1961, Tate Modern. Fonte: https://artpla.co/

Niki de Saint Phalle, Jean Tinguely e desconhecido, 1961, Paris. Fonte: https://artpla.co/


Niki de Saint Phalle, Grand Shoot – J Gallery Session, tinta, gesso e vários objectos sobre contraplacado, 1962, Guggenheim Bilbao. Fonte: http://nikidesaintphalle.guggenheim-bilbao.eus/

É, então, a partir dos anos 1960 que Niki de Saint Phalle se dedica às Nanas, palavra que em francês significa “prostituta” ou “mulher jovem”. Esculturas figurativas e coloridas vistas como uma celebração da essência feminina, nas quais acentua os elementos que mais definem o corpo feminino: as mamas, as ancas e o rabo.

Numa fase inicial, a sua criação baseia-se nas Black Nanas, como Black Venus, coincidindo com uma altura em que há uma grande produção de estátuas de personalidades negras como Miles Davis, Louis Armstrong, Joséphine Baxter, Michael Jordan, etc. A artista não ficou atrás e com estas peças revelou um grande afecto pela causa de integração das populações negras. 

Figuras representadas de formas e modos dignos de mulheres que as mostram tal e qual a realidade, mulheres reais não protótipos: grávidas, coloridas, corpos generosos, que amam ou sofrem, virgens ou prostitutas, mães que festejam a vida, mulheres grandes, volumosas, sorridentes ou carrancudas que pairam ou dançam e que desdenham o autoritarismo dos padrões de magreza do século XX, inseridos nos módulos de beleza dos quais Niki de Saint Phalle já se tinha retirado. Reforça o conceito de que todas as mulheres possuem e expressam qualidades de deusa universal.

Vemos várias dimensões abordadas nestas mulheres: a da beleza, da violência, da crueldade e da natureza que lhes dá força, mas também são como que a vitória sobre o fantasma masculino que começa lentamente a desaparecer. Funcionam igualmente como uma crítica ao papel e à dimensão que a mulher ocupa na sociedade, encarada como apenas um corpo que serve para ter filhos e amamentar.

Niki de Saint Phalle, Black Venus, poliéster pintado, 1965-1967, Whitney Museum of American Art. Fonte: https://whitney.org/

Niki de Saint Phalle, Dancing Nana (Rouge d’Orient – Bloum), 1995, François Odermatt Collection. Fonte: https://mauditsfrancais.ca/

Niki de Saint Phalle, Guardian Angel, Estação de Zurique. Fonte: https://www.sbb.ch/

Hon (termo sueco que significa “ela”), de 1966, é uma instalação temporária que a artista realizou para uma exposição no Moderna Museet de Estocolmo. Representa uma mulher grávida, deitada de costas e com as pernas abertas, numa semelhança ao momento de dar à luz. Para esta obra, Niki de Saint Phalle contou com o apoio do marido Jean Tinguely (1925-1991) e do artista sueco Pet Olof Ultvedt, invertendo o costume de serem as mulheres a submeter-se às ideias dos homens no meio artístico.

Esteticamente Hon assemelha-se às Nanas e conceptualmente representa a rejeição do patriarcado e a celebração da feminilidade. Podemos encarar esta obra como uma mulher-catedral e uma espécie de deusa pagã.

É uma transgressão do corpo feminino, sendo que os visitantes da exposição têm de entrar pela obra, neste caso pela vagina, e movimentar-se no seu interior. O corpo da mulher como espaço de mudança e criação, culminando numa espécie de nova existência aquando a saída das pessoas. Num dos seios há um bar onde servem copos de leite, fazendo essa ligação ao acto de amamentar, e num dos pés há um banco de namoro com escutas por microfone cujos sons recolhidos são ouvidos por quem se encontra no bar.

A escala desta obra levou Niki de Saint Phalle a trabalhar num modo mais arquitectónico, algo que teria o seu expoente máximo na escultura/casa The Empress no Tarot Garden.

Deixo-vos um pequeno vídeo para verem o processo de montagem e também a obra já em exposição e com visitantes:


O Tarot Garden foi considerado por Niki de Saint Phalle o projecto da sua vida. Um jardim de esculturas situado na Toscana no qual todas as peças são baseadas em símbolos de cartas de Tarot, influenciado pela visita da artista ao Parque Güell de Antoni Gaudí (1852-1926), em Barcelona. Quis, com este projecto, criar um realidade alternativa onde as pessoas se pudessem sentir livres e felizes, ao mesmo tempo que mostrava como uma mulher também consegue trabalhar em grande escala. Um projecto iniciado em 1978 e que levou 2 décadas a terminar.

Neste jardim existem obras de dois tipos: as maiores realizadas a partir de uma armação de ferro, cobertas a estuque e mosaicos de cores vivas, sendo que aqui contou a colaboração de uma vasta equipa; as mais pequenas realizadas em poliéster igualmente cobertas a mosaicos, estas com produção em Paris a partir de modelos feitos pela artista. Nas de maior escala inserem-se as seguintes figuras de Tarot: A Imperatriz, A Sacerdotisa, O Mágico, O Bispo, Castelo do Imperador, O Sol, O Dragão e A Árvore da Vida. Já nas mais pequenas podemos reconhecer A Temperança, Adão e Eva, O Mundo, O Ermita, o Oráculo, a Morte, O Diabo e O Enforcado.

A Imperatriz, ou The Empress, assume o destaque deste jardim, sendo que para além de uma escultura de grande escala é também uma casa habitável e na qual Niki de Saint Phalle residiu aquando a execução do projecto, usando-o também como estúdio. Ao usar este espaço como casa, associa-o ao lado sagrado do templo que é o corpo de uma mulher. Ao seu ventre. O seu exterior é decorado com mosaicos e cerâmicas e o interior revestido a vidro veneziano e espelho, criando uma espécie de bola de espelhos, mantendo a estética da Assemblage a que nos habituou no seu trabalho.
Os espaços centrais e comuns da casa situam-se no peito com janelas como lugar dos mamilos.

Só a título de curiosidade, obviamente que o custo deste projecto foi enorme e como forma de conseguir mais fundos, de Saint Phalle lançou um perfume. Com ele conseguiu 1/3 do orçamento necessário para esta obra cujo valor, nos dias de hoje, rondou os 11 milhões de dólares.

Niki de Saint Phalle, Tarot Garden, 1998, Toscana. Fonte: https://www.bostonglobe.com/

Niki de Saint Phalle, The Empress (exterior), Toscana. Fonte: https://www.apollo-magazine.com/

Niki de Saint Phalle, The Empress (interior), Toscana. Fonte: https://wsimag.com/

Niki de Saint Phalle, Perfume, c. 1982. Fonte: https://cleopatrasboudoir.blogspot.com/

Para terminar falo-vos do último projecto de Niki de Saint Phalle, concluído em 2003 já após a sua morte: The Grotto.
Esta obra situa-se em Hanover e antes da intervenção da artista era uma gruta de estilo barroco construída em 1676. Foi pedido a de Saint Phalle que aqui criasse um espaço de arte imersivo, o que ela fez jogando com as qualidades formais da arquitectura já existente. Manteve de igual modo a função original do espaço, utilizado como um refúgio do sol.

Esta gruta é dividida em 3 salas decoradas de forma diferente, com cores e materiais que as distinguem entre elas. A primeira remete para a ideia do espaço barroco original, a segunda é baseada na obra de Matisse e a última mostra ligações ao trabalho da própria Niki de Saint Phalle.

Niki de Saint Phalle, The Grotto, 2003, Hanover. Fonte: https://www.pinterest.co.kr/

Niki de Saint Phalle, The Grotto, 2003, Hanover. Fonte: https://blogaby.com/

Niki de Saint Phalle foi uma artista que desafiou as convenções artísticas com a criação de obras abertamente feministas, performativas, colaborativas e monumentais, algo que conciliou com uma grande inovação que vinha da sua ideia de ver novas formas de habitar o mundo.

Vimos como começou com trabalhos mais ligados à Assemblage e à Performance, ainda com um pé na Pintura, com Tirs, e já caminhando para a grande escala com as Nanas.
A partir daí encontrou um sem fim de formas produtivas: livros, filmes, projectos arquitectónicos aliados aos jardins escultóricos, joalharia e até o tal perfume. Não teve medo da variedade de territórios que lhe foi apresentada nem dos materiais e escalas que poderia utilizar. Para além disso, teve interesse em criar e partilhar a sua obra um pouco por todo o mundo, não só com a criação directa nos locais, mas também com as várias doações que fez ao longo da sua vida.

Acima de tudo, Niki de Saint Phalle foi uma mulher e uma artista que não teve medo de assumir as suas influências e o quanto elas a incentivavam a trabalhar, as suas vivências por mais dolorosas que elas fossem e o seu amor pela luta daquilo que acreditava ser justo, indo contra os valores que considerava errados. Estes valores tornaram-na uma figura central não só da defesa das igualdades sociais, tal como lhe deram um lugar de merecido destaque no mundo masculino do Nouveau Réalisme e, mais importante ainda, no mundo da Arte.

Imagem de topo: Niki de Saint Phalle, The Three Graces, 1995, Guggenheim Museum Bilbao. Fonte: https://www.port-magazine.com/

4 pensamentos sobre “Niki de Saint Phalle | Obra

  1. Começar por dizer que adorei o conceito das “Tirs” – não conhecia a ideia e é genial. Quer o que representa, quer o resultado obtido.
    Já as Nanas, já tinha visto várias vezes e conhecia mais ou menos o significado e o que elas representam. É uma forma muito bonita de representar e enaltecer a mulher, não como uma figura perfeita mas como ela realmente é.
    Sempre tive imensa curiosidade de visitar a Toscana e agora fiquei com vontade de ver o Tarot Garden ahah

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