A Morte de Marat, de Jacques-Louis David

Jacques-Louis David é sobretudo conhecido pelos retratos grandiosos que pintou do Imperador Napoleão Bonaparte, no entanto os seus temas artísticas e mesmo a sua vida pessoal e política começaram por se situar no lado dos revolucionários que, durante a Revolução Francesa, lutavam pelos direitos do povo. É nessa categoria que se insere A Morte de Marat, a obra que vos apresento hoje e que, desta forma, ajuda David a prestar homenagem aos mártires da revolução ao mesmo tempo que se afirma como um dos nomes máximos da estética Neoclássica.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat, óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas. Fonte: Wikipedia.

Jacques-Louis David (1748-1825) iniciou os seus estudos em 1766 lançando-se, assim, no que viria a ser um percurso académico lento e penoso, tendo terminado em 1781, em Roma. É ao copiar A Última Ceia de Valentim de Boulogne que parece encontrar o seu “eu” enquanto artista, chamando-lhe a atenção os contornos fortemente delineados, a iluminação teatral e o naturalismo poderoso – tudo elementos que podemos encontrar nas suas obras.

É conhecido por obras onde se destaca um efeito teatral da composição com as personagens que se distribuem pelo espaço; a perspectiva das suas obras é quase inexistente, pois opta por fundos lisos, uniformizados e abstractos. As figuras aparecem sempre em primeiro plano e são ricas em pormenores, desenho e volumetria. Criou, de modo simplificado, imagens revolucionárias que se impuseram como representações máximas do Neoclassicismo, e cujos temas variavam entre o histórico, o contemporâneo, a propaganda ideológica e o retrato – é no tema da propaganda ideológica que se insere a obra aqui apresentada.

Este pintor fundou a grande escola académica de pintura neoclássica francesa onde o lema era “saber desenhar”, mostrando-se esta atenta à figura humana, que era tratada com grande clareza de expressão e despojada de qualquer sentimentalismo.**

O Neoclassicismo mostra o interesse que os artistas desta época tinham pela Antiguidade, não só pela História em si, mas também por aquilo que os artistas de então faziam. Dirigiam-se activamente às escavações, principalmente em Roma, onde analisavam minuciosamente tudo o que se encontrava, desde edifícios, esculturas e ainda pinturas, neste caso os frescos de Herculano e Pompeia. Este interesse leva então ao nascimento do Neoclassicismo, o qual se propagou pela Europa.
Estes artistas defendem, assim, que o tardo-Barroco e o Rococó fossem dispensados e que se prosseguisse a imitação e recriação da Arte Clássica. Relativamente à Pintura Neoclássica, esta reinou entre os finais do século XVIII e as primeiras cinco décadas do século XIX. As suas raízes ideológicas assentavam no Iluminismo oitocentista, no Humanismo, no Cientismo e no individualismo, tendo a austeridade, a simplicidade e o geometrismo como notas dominantes. Os quadros deste estilo representam sobretudo assuntos históricos, alegóricos, mitológicos, heróicos ainda com espaço para o retrato. As telas são, na sua maioria, de grandes dimensões, apelando à grandiosidade e monumentalidade dos conteúdos tratados e mostram-nos composições geométricas com desenho rigoroso e linear, perfeccionismo técnico, tratamento elaborado da luz e do claro-escuro. A linha, o contorno e o volume predominam sobre a cor, que é de modo geral sóbria, sem grande variação cromática, adquirindo uma função simbólica de apelo ao pensamento e à razão, mas nunca à emoção.

Jacques-Louis David, Auto-Retrato, óleo sobre tela, 1794. Musée du Louvre. Fonte: Wikipedia.

Jean-Paul Marat (1743-1793) foi editor de um jornal populista e um revolucionário jacobino focado nos direitos do povo. Sendo um dos líderes mais controversos da Revolução, era implacável nas suas acções e, deste modo, temido por alguns que se viriam a tornar seus inimigos. Foi um dos instigadores de uma fase que ficou conhecida como “Reino de Terror”, a qual tornou em banho de sangue todos os ideais defendidos pelos revolucionários. Marat seria ele próprio vítima do que começara.

Sofria de um problema de pele que lhe causava grande transtorno e desfiguração e por isso passava muito tempo do seu dia-a-dia na banheira de modo a conseguir algum alívio. Esta banheira servia também de escritório: Marat tinha uma banqueta que usava como secretária portátil, permitindo-lhe assim trabalhar no banho. Todos sabiam deste seu hábito e por isso não terá sido difícil para Charlotte Corday (1768-1793), monarquista e contra-revolucionária de Caen, decidir assassinar Marat na banheira, no dia 13 de Julho de 1793. Corday entrou em casa de Marat através de uma mensagem falsa na qual prometia revelar alguns podres sobre os seus opositores.

Jacques-Louis David era devoto da causa da Revolução Francesa, sendo também ele membro da Convenção Nacional (tendo votado a favor da morte do rei) e por isso foi a escolha óbvia para imortalizar o evento e o homem na tela.
No dia anterior ao assassinato, David visitou Marat na sua casa. Escolhe representá-lo exactamente no momento da morte, ainda com a pena na mão direita e com a petição falsa de Corday na esquerda. A Morte de Marat, para além de ser uma imagem de propaganda jacobina, é um retrato nada convencional que mostra heroica e tragicamente a representação do, como o título indica, assassinato de Marat.
Depois de concluída, a obra foi exposta no Louvre em Outubro de 1793, sendo depois seu destino o ser exibida para sempre no salão da Convenção Nacional.

Joseph Boze, Retrato de Jean-Paul Marat (1743-1793), homem político, óleo sobre tela. Musée Carnavalet. Fonte: Wikipedia.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat (detalhe), óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas.

“A Morte de Marat” é um panfleto revolucionário, um acto deliberado de propaganda ideológica, em que o político Marat, assassinado enquanto tomava banho, nos é descrito com a aura poética e pura de um mártir cristão.**

É uma cena repleta de realismo, atenção ao pormenor, com luz crua e os já mencionados planos bidimensionais. Ainda assim, toda a cena se desenrola à nossa frente, numa espécie de primeiro plano, com todos os elementos aproximados o mais possível de nós, chegando a parecer que Marat poderá tombar para fora da tela. No mais à frente de tudo, vemos o punhal utilizado para cometer o crime, à esquerda; ali ao lado, jaz a mão de Marat ainda com a pena da mão. Se repararem bem, o punhal tem o mesmo tamanho que a pena de Marat e desta forma David mostra a diferença no modo de actuar dele e Corday – ele usa as ideias e ela uma arma.
A nota que vemos na mão esquerda de Marat é uma referência à traição de Corday e diz: “13 de Julho de 1793. Marieanne Charlotte Corday para o cidadão Marat. Como estou infeliz tenho o direito de apelar à sua boa-vontade”.

Neste primeiro plano aproximado vemos ainda a secretária de Marat, sobre a qual está pousado um papel onde Marat escreveu uma doação para uma viúva da guerra – com este elemento, David mostra o lado generoso do revolucionário. Esta caixa de madeira é aqui utilizada por David como se de uma lápide se tratasse, contendo a dedicatória “À Marat//David” – esta dedicatória mostra como o próprio David queria homenagear Marat, mesmo num quadro fruto de uma encomenda. Vemos nela a expressão de um luto colectivo, mas também a emoção sentida pelo próprio pintor. Esta intensidade pessoal anuncia já um pouco da sensibilidade da era Romântica que se avizinhava.
O rectângulo vertical que constrói a caixa de madeira contrasta com o rectângulo horizontal formado pelo cobertor que cobre a banheira e que ecoa o escuro do plano de fundo.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat (detalhe), óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat (detalhe), óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat (detalhe), óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas.

Há um contraste entre a pincelada controlada dos detalhes da cena e a pincelada aberta do plano de fundo, o qual, como já mencionado, é simples e escuro e nos obriga a focar toda a nossa atenção em Marat, em quem cai também toda a luz de um modo quase teatral. A luz, que vem de cima, ilumina a caixa de madeira, a cabeça e os braços de Marat; no entanto, o punhal utilizado e a zona onde se vê o sangue resultante do esfaqueamento estão quase ocultos pelas sombras. O sangue está circunscrito à pouca água da banheira que vemos, a uma dedada na nota e ao punhal. David concentra o olho do observador no mártir e não no crime em si. A luz dá um sentimento sagrado a um evento sangrento.
O cromatismo é sóbrio, com cores sobretudo frias, e modulado como se de uma estátua se tratasse, mostrando-nos, assim, um trabalho simples, silencioso e trágico.

O fundo liso, o estatismo da composição e o cromatismo sóbrio e modelado como se fosse uma estátua fazem desta obra, pela sua austeridade, um belo exemplo de pintura neoclássica.**

O vazio do espaço contrasta com os interiores luxuosos e intensos das pinturas do Rococó. David mostra-nos um homem que vive de acordo com os ideais da Revolução.
É, no entanto, um tanto ou quanto romantizada, pois Marat habitaria, certamente, uma casa diferente e porque, para além do homem se encontrar no banho (que já sabemos ser algo relacionado com o problema de pele) e usar um turbante que encharcava em vinagre também para conseguir algum alívio, não vemos referências à condição de saúde de Marat – sendo algo que o desfigurava, a sua figura parece tal qual uma estátua grega.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat (detalhe), óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas.

(…) ainda que toda a composição seja uma falsidade propagandística. A opulência da sala de banho de Marat decerto teria contrastado com o monástico republicano aqui indicado pela lhaneza dos remendos nos lençóis e do caixote, usado à guisa de secretária. Além disso, o Marat real não primava pela beleza; porém, a figura que David legou à posteridade tem o físico de um deus grego e o rosto seráfico.*

A cabeça de Marat está caída para trás e revela-nos um rosto suave que uma luz ténue que nos ajuda a focar a sua expressão, com um sorriso leve que deixa escapar o último suspiro; os olhos não estão completamente fechados. Estes dois elementos revelam-nos que somos testemunhas do momento imediatamente a seguir ao assassinato, talvez com Corday ainda presente na sala, sendo ainda possível ver o sangue a escorrer do golpe que está no peito.
O trabalho no corpo, com feições e músculos bem definidos, mostra exactamente o interesse clássico do estudo anatómico, exigindo que todos os pormenores sejam pintados cuidadosamente.

Toda a obra é uma alusão à História da Arte, sendo possível perceber semelhanças com a Pietà de Miguel Ângelo (1475-1564) e A Deposição de Cristo de Caravaggio (1571-1610), sobretudo na posição de Marat e no braço que pende para fora de banheira.
Estas referências a obras religiosas acabam por ser curiosas, pois a Revolução Francesa revelou-se contra a Igreja, tornando a iconografia religiosa proíbida. Ao inspirar-se nestas obras, David atribui a Marat o mesmo significado que Cristo tem nas obras dos seus antecessores.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat (detalhe), óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat (detalhe), óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas.

Jacques-Louis David, A Morte de Marat (detalhe), óleo sobre tela, 165×128, 1793, Museu de Belas-Artes de Bruxelas.

Esquerda: Caravaggio, A Deposição de Cristo, óleo sobre tela, 1602-1604. Museu do Vaticano. Fonte: Wikipedia.
Direita: Miguel Ângelo, Pietà, mármore de Carrara, c. 1499. Basílica de São Pedro, Vaticano. Fonte: Wikipedia.

Nas décadas que seguiram à Revolução, a opinião sobre esta alterou-se e Charlotte Corday acabou por ser celebrada por aquilo que fez e apelidada de “Anjo de Assassinato”. Corday disse, durante o seu julgamento, que matou Marat de modo a impedi-lo de matar milhares de pessoas. Foi enviada para a guilhotina com o último desejo de que alguém fizesse o seu retrato, o qual ficou a cargo de Jean-Jacques Hauer.

Depois da Revolução, David adquire o cargo de “pintor do reino” do Imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821), facto que deixa os historiadores confusos sobre quais seriam realmente os ideias que defendia.
Após a queda de Napoleão, o pintor exila-se em Bruxelas.

É deste modo que vemos A Morte de Marat habitar um período de obscuridade, com o pintor a decidir escondê-la de todos. Após a sua morte, a família tenta vender a obra, mas sem sucesso. Esta é a única de duas obras que David pintou dedicadas a revolucionários assassinados na época de 1790 que sobreviveu. A outra era dedicada a Le Peletier (1760-1793) e mostrava-o voltado para o lado esquerdo da tela, ficando frente a frente com Marat.
Foi Charles Baudelaire (1821-1867), poeta e crítico de arte, quem trouxe a pintura de volta à ribalta, após a ver numa exposição dedicada a David e Ingres (1780-1867), em 1846. Numa espécie de ode, celebrou a verdade que mostra sobre a política da altura.
A Morte de Marat pertence ao Museu de Belas-Artes de Bruxelas desde 1893.

Jean-Jacques Hauer, Charlotte Corday, 1793, Musée Lambinet. Fonte: Wikipedia.

A Morte de Marat de Jacques-Louis David foi tão acalmada pelos revolucionários, que o estúdio do pintor teve de criar várias cópias da obra, as quais podemos ver, por exemplo, no Musée du Louvre, no Palácio de Versalhes, no Museu de Belas-Artes de Dijon, no Museu de Belas-Artes de Reims, havendo ainda uma pertencente a uma colecção privada, também em França.

Na altura e nos anos que se seguiram, foram alguns os artistas que também retrataram o tema. Alguns cingem-se, tal como David, apenas a mostrar Marat, mas há também quem insira a assassina na cena, como é o caso de Paul Baudry (1828-1886) e Jean-Joseph Weerts (1846-1927).

Depois do seu tempo, foram vários os artistas que se inspiraram na obra do pintor francês para também eles criarem, muitos deles dando significados distintos às suas peças, mas assumindo a semelhança com o corpo e a situação representada. Tal acontece com obras de Edvard Munch (1863-1944), Ai Weiwei (n.1957) e ainda num vídeo de Robert Wilson (n.1941) no qual Marat é interpretado por Lady Gaga (n.1986).

Paul Baudry, O Assasinato de Marat por Charlotte Corday, óleo sobre tela, 1860. Museu das Belas-Artes de Nantes. Fonte: MHEU.

Esquerda: Santiado Rebull, A Morte de Marat, óleo sobre tela, século XIX. Fonte: Wikipedia.
Direita: Joseph Roques, A Morte de Marat, óleo sobre tela, 1973. Musée des Augustines. Fonte: Meisterdrucke.

Jean-Joseph Weerts, O Assasinato de Marat por Charlotte Corday, óleo sobe tela, c. 1880. Fonte: DailyTelegraph.

Esquerda: Edvard Munch, A Morte de Marat II, óleo sobre tela, 1907. The Munch Museum. Fonte: GoogleArts&Culture.
Direita: Ai Weiwei, A partir d’A Morte de Marat, peças Lego, 2019. Fonte: ArtInterview.

Esquerda: Robert Wilson, Lady Gaga como Marat, 2013. Fonte: RobertWilson.
Direita: Jean Luc Moerman, A Morte de Marat, 2021. Fonte: AirMail.

Gavin Turk, A Morte de Marat, trabalho a cera numa vitrine, 1998. Fonte: GavinTurk.

Apesar do tempo em que esteve escondida, A Morte de Marat acabou por se tornar um das imagens definidoras daquela época, mostrando alguns dos elementos mais fortes que constituem a pintura Neoclássica.
Tendo Jacques-Louis David estando ao lado de Napoleão por partilhar os seus ideais ou mesmo só como modo de sobrevivência, este retrato panfletário que pintou de Marat vai sempre mostrar o lado que escolheu durante a Revolução Francesa, não tendo medo de prestar homenagem àqueles que tinha a seu lado e cujas ideias apoiava e seguia.

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Referências:
Davies, Penelope J. E.; Denny, Walter B.; Hofrichter, Frima Fox; Jacobs, Joseph; Roberts, Ann M.; Simon, David L., A Nova História da Arte de Janson – A Tradição Ocidental, 2010, Fundação Calouste Gulbenkian*;
Farthing, Stephen, 1001 Paintings You Must See Before You Die, 2011, Quintessence;
Newall, Diana, Compreender a Arte – Uma Valiosa Ajuda para a Interpretar e Apreciar, 2008, Editorial Estampa;
Pinto, Lídia; Meireles, Fernanda; Cambotas, Manuela Cernadas, História da Arte Ocidental e Portuguesa, das Origens ao Final do Século XX, 2006, Porto Editora**;
ArtNet – ‘The Death of Marat’ Defined the French Revolution. Here Are 3 Things You Might Not Know About Jacques Louis David’s Masterpiece;
SlideShare – A Morte de Marat, David – A Cultura do Salão: caso prático 3;
Youtube – Jacques-Louis David, The Death of Marat;
Youtube – The death of Marat.

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