Roubo de Arte: O Duque de Wellington, The National Gallery, 1961

Depois de vos falar de oito histórias de roubos de obras-de-arte que aconteceram entre 1473 e 1975, neste artigo trago-vos apenas um caso, o qual teve lugar dentro dessa linha temporal, mais precisamente em 1961.

Falo-vos do primeiro e único roubo de que a The National Gallery, em Londres, foi alvo até aos dias de hoje e o qual merece um artigo só seu por ter alguns contornos inesperados, por apelar ao lado mais humano e, finalmente, porque é o tema do filme The Duke, o qual estreou nos cinemas em 2021.

Francisco de Goya, O Duque de Wellington, óleo sobre madeira, 1812-1814. The National Gallery, Londres. Fonte: TheNationalGallery.

Comecemos por introduzir a obra: O Duque de Wellington, de Francisco de Goya (1746-1828). Este quadro foi pintado entre 1812 e 1814, após Arthur Wellesley, Primeiro Duque de Wellington, derrotar o exército de Napoleão Bonaparte e entrar vitorioso em Madrid, em Agosto de 1812. Esta vitória insere-se na Guerra Peninsular (1808-1812), a qual começa após a França invadir a Espanha e impor o irmão de Napoleão como rei. Segue-se um período brutal de conflitos entre os dois países e no qual também Portugal e Inglaterra acabam por participar. A Batalha de Salamanca, na qual o Duque consegue vencer as tropas francesas, é um ponto de viragem no conflito que eventualmente leva ao exílio de Napoleão dois anos depois.

Francisco de Goya era o pintor da corte há já algum tempo e, por isso, a escolha ideal para realizar este retrato. O Duque posou para o pintor pouco tempo após a vitória e dessa sessão resultaram três obras: esta da The National Gallery, uma outra tela exposta na Apsley House e um desenho pertencente ao The British Museum; todos eles localizados em Londres, portanto. O desenho e a pintura analisada neste artigo podem ter servido como preparação para a obra maior a cavalo, mas também se acredita que as três peças possam ser todas trabalhos independentes.

Nesta obra vemos um homem com um ar cansado pelo tempo de batalha ao invés de um rosto que mostra o seu triunfo, representado a meio-corpo e encarando quem o vê voltado a 3/4. É-nos dada uma composição simples que nos obriga a concentrar o nosso olhar na face do Duque, uma das figuras de topo a nível político e militar da Inglaterra do século XIX, tendo ocupado por duas vezes o cargo de primeiro-ministro.
Percebemos que foi um trabalho rápido, sendo que as medalhas, embora facilmente identificáveis, são pintadas de modo mais livre, sem uma atenção focada nos seus pormenores. Também essas medalhas permitem-nos saber que a obra que foi modificada posteriormente por Goya, tanto na posição do retratado como também nessas medalhas que aparecem e que foram sendo acrescentadas à medida que o Duque era galardoado. Outro detalhe que nos mostra o trabalho rápido é a camada de castanho que vemos sobretudo nos olhos e na boca e que ajudam a criar um maior contraste entre as áreas mais claras e as mais escuras. O desgaste da face do Duque contrasta com o brilho do uniforme que usa.

Francisco de Goya, O Duque de Wellington (detalhe), óleo sobre madeira, 1812-1814. The National Gallery, Londres. Fonte: TheNationalGallery.

Mas passemos ao roubo e ao que lhe deu origem.

Corria o ano de 1961 quando John Osborne, Duque de Leeds, decidiu vender a obra num leilão. Correndo o risco de ver a pintura rumar até aos Estados Unidos da América, após uma oferta de 140.000 libras (hoje equivalentes a dois milhões de libras) por parte do coleccionador americano Charles Wrightsman, o Tesouro Britânico uniu-se à caridade Wolfson Foundation para reunir o valor suficiente para cobrir esta oferta. Toda a situação tornou esta a obra mais famosa em todo o Reino Unido na altura, com várias pessoas a visitar o museu para perceberem o porquê de tal gasto.
O quadro estava antes exposto, em modo depósito, na National Portrait Gallery, mas ao ser comprado pelo Governo teve obrigatoriamente que passar a habitar as salas da The National Gallery. Os responsáveis pela Galeria na altura não encararam a mudança com grande felicidade, pois não consideravam esta uma pintura testemunha da excelência de Goya, sendo já um exemplo da sua fase tardia.

O Duque de Wellington é exposto a 2 de Agosto de 1961. E roubado no dia 21.

O início do filme The Duke mostra um pouco da vida da família Bunton, originária de Newcastle, de modo a que percebamos as suas origens humildes e o que defendem ou não, ao mesmo tempo que nos é anunciada a compra do quadro – notícia que vemos na sua sala-de-estar, quase parecendo que fazemos parte deste núcleo familiar.

No filme não vemos quem rouba o quadro, mas tudo nos leva a crer que foi Kempton Bunton (Jim Broadbent), o pai, pois encontrava-se em Londres na altura do roubo, sendo que a última imagem que nos mostram antes do acontecimento é a dele sentado em Trafalgar Square, a praça onde está localizada a The National Gallery.
Após o roubo, sabemos logo que a obra está na casa da família e que tanto o pai como o filho, Jackie Bunton (Fionn Whitehead), sabem do caso, mas continuamos sem saber exactamente quem cometeu o crime. Juntos tratam de esconder a pintura atrás de uma parede falsa num guarda-roupa e planeiam fazer uma espécie de pedido de resgate: o quadro por licenças de televisão gratuitas para os aposentados.

Daily Mirror, 1961. Fonte: 007Magazine.

The Duke, 2021. Fonte: SpicyPulp.

The Duke, 2021. Fonte: IMDB.

Os guardas dão pela falta da obra, mas pensam que a mesma foi retirada pela equipa da Galeria por razões oficiais. Só quando abrem o espaço ao público é que percebem que tinha sido efectivamente roubada. Não foram encontrados intrusos nem danos, tal como não havia vestígios de equipamento que pudesse ter sido utilizado. Estes foram alguns dos motivos que levaram desde logo a polícia, liderada pelo Inspector George Chandler, a assumir tratar-se de um assaltante profissional e, muito provavelmente, estrangeiro. Os italianos foram os principais suspeitos, sendo que Giovanni Pilisi, ligado a um grupo criminoso, foi um dos nomes mais falados. No filme vemos bem marcada esta ideia de que teriam sido os italianos, com os polícias a referirem-se várias vezes a eles.
Houve também a hipótese de este roubo ser uma forma de celebrar os 50 anos do roubo da Mona Lisa, em 1911.

Foi o primeiro roubo do género do Reino Unido. Como a polícia não sabia como agir, seguiram o padrão dos roubos internacionais, muitos deles cometidos por indivíduos ou organizações. Nunca puseram sequer a hipótese de que um homem normal pudesse ser o responsável.

Sir Kenneth Clark, o então director da The National Gallery, alegou que o roubo aconteceu por puro idealismo, como uma forma de contestar os valores altos pagos por obras-de-arte. Ainda assim, apresentou a sua demissão e foi iniciado um processo sobre a segurança dos museus e galerias nacionais britânicas.
Sir Gerald Kelly, na altura Presidente da Royal Academy e conhecido por causar controvérsias, veio a público declarar que a obra era falsa e que todos deviam ficar felizes por ter desaparecido e desejar que nunca fosse recuperada. No entanto, é de ressalvar que o roubo fez com que mais pessoas fossem ver o espaço vazio deixado pela obra do que as que a foram ver naqueles dias em que esteve exposta.

Após alguns dias, a The National Gallery anuncia uma recompensa de 5 mil libras a quem devolvesse o quadro.

Investigadores da Scotland Yard à procura de provas no WC masculino da The National Gallery. Fonte: Mirror.

Aviso de recompensa da The National Gallery. Fonte: NickleintheMachine.

Kempton Bunton, na altura com 57 anos, era já uma pessoa conhecida na zona antes do roubo, sendo que não tinha problema em enfrentar os seus empregadores caso considerasse alguma situação injusta – o que lhe valia ser constantemente despedido. A sua maior causa estava relacionada com as licenças de televisão para os pensionistas, sendo que considerava que não deviam ser obrigados a pagar, porque a televisão era a única companhia e conforto de muitos deles – sendo o maior exemplo os veteranos da Guerra.

A ideia foi sempre a de devolver a obra em troca de algo benéfico para essas pessoas. Bunton sénior começou por pedir 140 000 libras para uma caridade não especificada em troca do quadro, pedido esse que não foi levado a sério. Enviou vários pedidos de resgate para o jornal The Daily Mirror, um dos quais incluía a etiqueta do quadro, mas nunca obteve resposta.

No filme vemos Kempton Bunton a entrar na galeria com o quadro em mãos para o devolver, sendo posteriormente detido. Devolveu a obra, confessou o roubo, contou como o fez e explicou a sua motivação. No entanto, na realidade não foi assim que tudo se desenrolou. Na verdade, ele colocou a pintura num cacifo da estação de comboios de Birmingham, a 5 de Maio de 1965, e enviou o recibo para o The Daily Mirror, permitindo assim que a obra fosse recuperada. Algumas semanas depois, a 19 de Julho, foi à Scotland Yard e entregou-se como culpado.

Também no filme vemos que a sua motivação para devolver a obra aparece porque a namorada do seu outro filho descobre que ele tem a obra escondida em casa e decide fazer chantagem: ou concorda que ela leve a obra para algum sítio e indique às autoridades que a encontrou de modo a receber a recompensa e dividindo-a entre os dois ou ela denuncia-o às autoridades. Posto isto, ele decide devolver a obra por vontade própria, pois as 2500 libras não são suficientes para o que pretendia. Aqui, a esposa descobre e ele alega que o filho apenas o ajudou a construir o esconderijo, dando a entender que foi ele quem tratou do roubo. No entanto, Kempton Bunton, ao contrário do que vemos no filme, não se entrega por a nora descobrir, mas sim porque, sem querer, revela alguns detalhes a um amigo. No dia a seguir a esse deslize, entregou-se à polícia de modo a impedir que o amigo o denunciasse e reclamasse a recompensa.

Um dos pedidos de resgate escrito por Kempton Bunton. Fonte: ITV.

Daily Mirror, 1965. Fonte: 007Magazine.

Arthur Lucas, conservador da The National Gallery, com a obra roubada após a sua recuperação, 24 de Maio de 1965. Fonte: NationalPortraitGallery.

Após a devolução do quadro e a entrega de Kempton às autoridades, The Duke leva-nos para a sala de audiências permitindo-nos assistir ao julgamento. Durante este segmento vemos o filho em casa a admitir à mãe Dorothy (Helena Mirren) que roubou o quadro por achar que assim conseguiria mudar algo na vida da família, sendo que estava cansado de ver a mãe a trabalhar como doméstica e o pai a ser gozado por todos devido aos seus ideais. Queria que o seu pai fosse ouvido e confessou que o roubo seria uma forma de tentar angariar dinheiro para ajudar a pagar as licenças televisivas.

Ao mesmo tempo que decorre o julgamento, ouvimos como Jackie efectuou o roubo. Eram 5h50, quando entrou na casa-de-banho dos homens com auxílio de um escadote deixado na zona de construção no exterior da The National Gallery. Depois só precisou de encontrar a sala onde estava exposta a obra e roubá-la. Os guardas estariam a dormir ou distraídos a jogar cartas e por isso não notaram a sua presença; os alarmes não tocaram, pois às 4h30 entrara a equipa de limpeza.
Na altura em Londres por questões de trabalho, Jackie Bunton nunca pensou que iria conseguir executar o seu plano até ao fim. Quando saiu da Galeria, atirou a moldura, escondeu a obra no quarto em que estava alojado e depois levou-a para a sua casa.

No discurso final do advogado de defesa, no julgamento, há a menção a que não é proibido nem condenado por lei o tirar algo do lugar/pedir emprestado se houver a intenção de se devolver o item – portanto, não é roubo. E Bunton tirou o quadro com o intuito de em troca dele arranjar meios para ajudar os mais desfavorecidos. O advogado apela, assim, à humanidade de Bunton.

Dos quatro crimes de que estava acusado, Kempton Bunton é tido como inocente de roubar o quadro; inocente de exigir dinheiro com ameaças para a devolução do quadro; inocente de criar perturbação pública ao privar o público de ter a oportunidade de ver o quadro; mas culpado de roubar a moldura (a qual tinha o custo de 80 libras) e por isso foi condenado a três meses de prisão.

Se pensam que a história fica por aqui, estão bem enganados.

Em 1969, após ter dado as suas impressões digitais para outro caso e achar que poderiam corresponder com impressões retiradas do quadro após a sua devolução, Jackie Bunton decide entregar-se à Polícia como autor do roubo do quadro. Não havendo provas e tendo o Ministério Público receio do novo discurso que Kempton poderia proferir (o seu julgamento ficou bastante popular), optou-se por não se avançar com a acusação de Jackie e por manter o assunto em segredo.
Esta informação seria revelada ao público apenas em 2012.

Kempton Bunton à porta do tribunal. Fonte: Mirror.

Evening Chronicle, 1965. Fonte: ChronicleLive.

The Duke, 2021. Fonte: BBC.

Dr. No, 1962. Fonte: ArtReview.

Embora no filme todos estes eventos pareçam acontecer num curto espaço de tempo, a verdade é que, e como puderam reparar, desde o roubo até à entrega da obra passaram quatro anos. Durante este tempo, houve até oportunidade para algumas brincadeiras cinematográficas, sendo que, em 1962, o quadro aparece no filme Dr. No da saga James Bond, como parte integrante do covil do vilão.

Kempton Bunton deu muito que falar com o seu julgamento e as causas que apoiava, mas nada foi feito naquela altura em relação ao que ele pedia para os pensionistas. Apenas em 2000 foram instauradas licenças gratuitas de televisão para quem tem mais de 75 anos.

The Duke apresenta-se como um filme com uma base bastante sólida de factos reais, mas que ainda assim recorre a alguma fantasia, talvez para tornar alguns aspectos mais apelativos do que foram na sua versão real. Não deixa, no entanto, de ser de aproveitar um conteúdo que se refere a um acontecimento tão marcante da vida artística e museológica, em especial do Reino Unido e da The National Gallery.

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Referências:
Art Review – Why a Retired Bus Driver Stole a Goya from the National Gallery;
BBC – The bus driver who confessed to stealing a Goya masterpiece;
The Guardian – Revealed: 1961 Goya ‘theft’ from National Gallery was a family affair;
The National Gallery – The Duke of Wellington;
The National Gallery – The Missing Masterpiece.

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