Os Cordeiros Pascais de Josefa de Óbidos

O cordeiro é o símbolo mais antigo da Páscoa, sendo já um elemento importante na celebração judaica, bem como em vários cultos da Antiguidade. Esta ideia de sacrifício de animais aos Deuses não é, portanto, novidade da religião Cristã. Na Páscoa, o sacrifício deste Cordeiro de Deus, ou Agnus Dei em latim, acontece como meio para salvar a Humanidade com a ressurreição de Jesus Cristo.

Em jeito de celebração da Páscoa, trago-vos, hoje, três obras da pintora portuguesa Josefa de Óbidos que se centram exactamente na representação deste animal na sua condição de ser sacrificado.

Josefa de Óbidos, Cordeiro Místico, c. 1660-1670, óleo sobre tela. Paço dos Duques de Guimarães. Fonte: PaçodosDuques.

Cordeiro de Deus, ou Agnus Dei, é a designação cristã para referir Jesus Cristo, tal como nos é dito no Novo Testamento, no Evangelho do Apóstolo João (1:29): “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira os pecados do mundo”. Fala-se de Jesus como sendo o Cordeiro de Deus, porque, no Novo Testamento, é ele quem se sacrifica em favor de toda a Humanidade, tomando assim o lugar que o cordeiro tem no Antigo Testamento.

É no século XVII que a representação artística do Cordeiro Místico atinge um pico, tornando-se um sucesso da iconografia cristã durante o Barroco.

É também na época Barroca que encontramos a pintora portuguesa Josefa de Ayala Cabrera (1630-1684), mais conhecida como Josefa de Óbidos, cuja obra é caracterizada pela inspiração religiosa e pelas naturezas-mortas, sempre empregando de modo genial a pintura de elementos simples. A fama desta artista nascida em Sevilha prende-se não só com a sua exímia vocação artística, mas também por, na época, ser incomum uma mulher conseguir atingir um patamar de educação tão elevado, sendo ainda uma das poucas pintoras europeias na altura.

Josefa de Óbidos, The Sacrifical Lamb, c. 1670-1684, óleo sobre tela. The Walters Art Museum. Fonte: TheWaltersArtMuseum.

O cordeiro é um tema recorrente na sua obra, sendo que aparece como elemento principal em três pinturas, nas quais o animal aparece de pernas atadas, de modo a reforçar a sua qualidade de vítima e o seu sacrífico. Emblema da obediência e virtude cristã, aparece ainda vivo e o branco do seu pêlo simboliza a pureza – o seu ar resignado representa o próprio sacrifício do filho de Deus. A inclusão de uma auréola torna-o mais próximo da figura de Jesus Cristo.

O focinho do cordeiro dá-nos o lado emocional que esta obra pede que tenhamos: há um olhar de tristeza que se traduz num dramatismo característico do Barroco, o qual a artista trabalha como algo sentimental. Josefa de Óbidos pinta cordeiros novos, algo que sabemos por os mesmos ainda não apresentarem cornos. Nas três obras aqui apresentadas, naturezas-mortas de grande realismo, o animal aparece sobre uma mesa ou altar ao centro da composição, sendo que o seu pêlo salta à vista sobre o fundo escuro, que lembra a solenidade do momento.

Tal como era comum no Barroco, vemos na obra de Josefa de Óbidos um grande foco no estudo da luz e dos contrastes. Há um rigoroso esquema de desenho do contorno e no tratamento plástico que se nota no excelente domínio do claro-escuro e, consequentemente, do modelado de todos os elementos, algo que também percebemos com os contrastes conseguidos com recurso a linhas curvas e contracurvas, especialmente na forma do animal.

Josefa de Óbidos, Cordeiro Pascal (Agnus Dei), c. 1670, óleo sobre tela. Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, Évora. Fonte: MuseudeÉvoraFacebook.

Das três obras que podem ver neste artigo, sem dúvida que a que mais se destaca é a que pertence à colecção do Museu de Évora, devido à moldura floral que circunda o animal. As flores aparecem como pequeno apontamento na obra pertencente à colecção do The Walters Art Museum, mas é nesta que ganham um destaque tão acentuado como o próprio cordeiro.
As flores atenuam o acto violento que está prestes a descer sobre o animal e mostram um horror ao vazio que contrasta com esse mesmo vazio que vemos nas outras duas obras.

Cada flor que nele vemos representada tem um significado simbólico que podemos associar ao mundo cristão, contribuindo ainda mais para esta narrativa que vem sendo apresentada até aqui:
* videira – significa alegria, bons intentos e esperanças perdidas. É também símbolo de Cristo, da Eucaristia e da Ressurreição, da Terra Prometida e do Paraíso, da Igreja de Deus e da Alma Humana e da Virgem Maria;
* acanto – símbolo da Paixão de Cristo. Atributo da Virgem Maria;
* açucena – significa saudades. É também símbolo da pureza, virgindade e castidade;
* rosa e rosa-brava – significam graça e gostos da vida. São também símbolos da Virgem e da Imaculada Conceição;
* cravo – atributo da Virgem Maria e símbolo do Amor Divino ou terreno;
* trigo-mole – significa fartura. É também símbolo do pão da Eucaristia e da Sagrada Comunhão;
* maravilhas – atributo da Virgem Maria e dos monges;
* jasmim – símbolo da Virgem Maria, da graça, da elegância, amabilidade, amor divino, alegria eterna. Associado à rosa significa fé;
* anémona e pulsatila – símbolo do sofrimento, da morte e da trindade. Surgem normalmente associadas a cerimónias fúnebres e à Paixão de Cristo;
* erva-da-Trindade – símbolo da trindade (três pétalas diferentes: branca, amarela e púrpura). Atributo da Paixão de Cristo, símbolo das chagas de Cristo e alusão ao pensamento e à meditação;
* erva-andorinha – símbola da Primavera, da boa nova da vinda de Cristo ao mundo e de Cristo iluminador das almas;
* chasgas-de-Cristo – símbolo das Chagas;
* malmequer – atributo da Virgem Maria. Tem, também, conotação fúnebre.
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Esta obra que podemos definir como um quadro dentro de um quadro tem ainda outra particularidade ligada ao mundo cristão: no altar onde pousa o cordeiro, vemos a inscrição latina “[Agnus] Occisus [est] ab origine mundi”, que nos diz “O cordeiro morto está na origem na Humanidade”.

Todos os elementos apresentados nesta tela são compostos pelo mesmo detalhe realista que o cordeiro, mostrando-nos que a artista portuguesa não deixava os detalhes como algo secundário a tratar, atribuindo-lhes o mesmo tipo de importância que ao elemento principal dava.

Josefa de Óbidos, Cordeiro Pascal (Agnus Dei) (detalhe), c. 1670, óleo sobre tela. Museu de Évora. Fonte: MuseudeÉvoraFacebook.

Apesar de Josefa de Óbidos ter passado quase toda a sua vida em Portugal, estes trabalhos mostram bem a sua influência espanhola. Este tema, por exemplo, é retratado directamente dos modelos do pintor espanhol Francisco de Zurbarán (1598-1664), que o pai de Josefa, Baltazar Gomes Figueira (1604-1674), vira e também pintara, já quando em Portugal.
O Cordeiro Pascal foi também um assunto muito importante da literatura portuguesa e espanhola do século XVII, não faltando inspiração para a artista conseguir trabalhar.

Esquerda: Francisco de Zurbarán, Agnus Dei, óleo sobre tela, c. 1635-1640. San Diego Museum of Art. Fonte: Wikipedia.
Direita: Francisco de Zurbarán, Agnus Dei, óleo sobre tela, c. 1635-1640. Museo del Prado. Fonte: Wikipedia.

Josefa de Óbidos foi um dos nomes mais dominantes do Proto-Barroco e do Barroco em Portugal e uma das poucas artistas activa na Península Ibérica. Contrariando o que era expectável para uma mulher ainda para mais solteira na época e para alguém que vivia numa terra pequena como Óbidos, conseguiu fazer da Pintura a sua vida. Ganhou nome devido à sua grande capacidade de pintar naturezas-mortas e retratos (nos quais se incluem alguns elementos da Família Real), os géneros que eram considerados apropriados para uma mulher pintar.

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