Santo António, de Aurélia de Souza

O mês de Junho é sinónimo de Santos Populares; Portugal veste-se de bandeiras, manjericos e balões para festejar e, de certa forma, dar as boas-vindas ao Verão.
Já sabem que o proximArte está sempre pronto a assinalar qualquer dia especial e claro que o Santo António não seria excepção.

A obra seleccionada para celebrar este dia podia ser completamente religiosa, mas a escolha recaiu sobre uma peça um pouco diferente e que saiu das mãos da pintora Aurélia de Souza: Santo António, pintura que remonta a cerca de 1902 e que podemos resumir como sendo um auto-retrato inovador e desconcertante, característico de uma pintura resultante das inquietações perante a vida, de um sentido de insatisfação e procura e de permanente melhoramento.

Aurélia de Souza, Santo António, c. 1902, óleo sobre tela, Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio/Câmara Municipal do Porto.

Aurélia de Souza nasceu a 13 de Junho de 1866, em Valparaíso, no Chile, mas muda-se para o Porto com apenas três anos, em 1869. Esta viagem de mudança de país é potenciada pela fortuna que o pai conseguiu pelo seu trabalho na construção de caminhos-de-ferro.
Chegados à cidade portuense, instalam-se na Quinta da China, uma propriedade sobre o Douro e que viria a ser tela de fundo de várias pinturas da artista. Será neste local que tudo vai gravitacionar na vida de Aurélia até à sua morte, em 1922.

Desde pequena que Aurélia mostrou uma grande destreza para trabalhar o lápis e o pincel, mas é já com 27 anos, em 1893, que se matricula na Academia Portuense de Belas-Artes, levando consigo Sofia de Souza, uma das suas irmãs. Esta inscrição tardia no mundo das Belas-Artes deve-se ao constante adiar da sua mãe em ceder à sua vontade, pois acreditava que, tal como qualquer outra mulher na altura, Aurélia estava talhada para ser esposa e mãe.

Ainda com o curso por terminar, viaja, em 1889, para Paris e ingressa na Academia Julian, que apenas dois anos antes tinha aberto as suas portas às mulheres interessadas em receber educação no mundo artístico.

Antes de retornar ao Porto, viaja um pouco pela Europa, tendo oportunidade de conhecer novas culturas, paisagens, pessoas e artistas. E talvez um pouco por isto nunca vá ter a sua obra a remeter unicamente para um estilo em específico, sendo, portanto, considerada uma artista de transição do século XIX para o século XX. Aurélia de Souza foi uma percursora na pintura e no estilo de vida, afirmando-se num universo marcadamente masculino. Ainda assim, e embora nos tenha deixado uma obra variada e vasta com a qual participou em algumas exposições, na altura ficou conhecida apenas como pintora de flores, não tendo alcançado o reconhecimento merecido.

Aurélia de Souza, Santo António (detalhe), c. 1902, óleo sobre tela, Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio/Câmara Municipal do Porto.

Aurélia dedicou-se à prática do retrato mesmo antes de ingressar na Academia Portuense de Belas-Artes, tendo desde o início este interesse na captação e representação do rosto humano. Entre o retrato de encomenda, o de família, de empregadas domésticas e crianças várias, terá sido o género pictórico que mais trabalhou. Aqui não nos podemos esquecer de incluir os seus auto-retratos que, embora centrados em si, não deixam de ter esse lado do interesse pela representação facial. É também um exercício de pesquisa sobre si própria e que lhe permitiu seguir por caminhos autónomos aos do Naturalismo vigente na época.

O que conhecemos de Aurélia é o que nos contam os seus quadros intimistas baseados em momentos do quotidiano. E este Santo António não deixa de ter a mesma carga pessoal e íntima que têm, por exemplo, as suas pinturas de interior onde representa a sua família nos afazeres diários.

A mulher tem um papel de destaque no seu trabalho, não só por a sua família ser constituída essencialmente por mulheres, sendo que vivia com a mãe, a avó e as cinco irmãs, mas também porque a sua mãe assumiu o comando da família bem como a educação das filhas, após a morte do marido. E assim talvez não nos admire esta ousadia dela própria, uma mulher, encarnar um santo, dando-lhe as suas feições e o seu corpo.

Aurélia de Souza, Santo António (detalhe), c. 1902, óleo sobre tela, Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio/Câmara Municipal do Porto.

Aurélia trabalha de acordo com os seus pares, sendo que artistas seus contemporâneos também representaram Santo António recorrendo ao auto-retrato ou ao retrato de familiares, como é o caso de António Carneiro e Columbano Bordalo Pinheiro, respectivamente.

Santo António é uma das obras mais reconhecidas de Aurélia de Souza. A escolha deste santo padroeiro está relacionada com o dia de nascimento da artista, o qual coincide com o Dia de Santo António, o santo casamenteiro.
Aqui, perde-se, no entanto, a habitual mística reconfortante associada a Santo António, o qual perde também os seus ícones tradicionais: a criança ao colo e os lírios, que representam a estação na qual o santo morreu.

O que me conquistou não foi a resolução plástica, mas a ousadia de Santo António, vestido com o hábito franciscano, ser manifestamente um auto-retrato. Aurélia deu ao Santo, sem registo icónico preciso, o seu rosto, as suas mãos e a fragilidade elegante do seu corpo.

-Raquel Henriques da Silva.

É comum os auto-retratos de Aurélia de Souza estarem assinados, mas não datados e tal acontece com a obra aqui em análise, a qual se crê ter o seu momento de criação em 1902, algo deduzido pelos vários tipos de assinaturas que a artista foi usando ao longo dos anos, cada uma em alturas específicas.

Aurélia de Souza, Santo António (detalhe), c. 1902, óleo sobre tela, Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio/Câmara Municipal do Porto.

Aurélia de Souza, Santo António (detalhe), c. 1902, óleo sobre tela, Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio/Câmara Municipal do Porto.

Esta tela apresenta-se num tamanho à escala real de um corpo, o que nos permite criar uma relação de maior proximidade. Este Santo António aureliano fita-nos olhos nos olhos; apresenta-se frontalmente e com uma ligeira inclinação para a frente; um dos seus pés é visível por fora do manto, mostrando-nos, talvez, uma intenção de se dirigir a nós, tal como o olhar o faz. O dedo indicador da mão direita ergue-se perante os outros e parece indicar um pedido de silêncio ou uma questão.

Nele podemos persentir possíveis interrogações sobre o papel da mulher na Igreja, na sociedade ou mesmo na arte. A frontalidade do olhar ascético e altivo, as sobrancelhas arqueadas, e a composição das mãos sugerem uma ambiguidade interpretativa e uma densidade psicológica e espiritual que podem revelar ora acatamento à religião ora confronto através do referido ao dedo indicador. Esta ambiguidade torna a obra uma das mais interessantes da pintora.*

Aurélia de Souza, Santo António (detalhe), c. 1902, óleo sobre tela, Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio/Câmara Municipal do Porto.

Um dos destaques desta obra é o facto de Aurélia de Souza optar por não seguir a iconografia tradicional. O espaço envolvente da figura é simples e mostra, ao fundo, uma prateleira com livros, indicando uma ligação a um ambiente íntimo, por exemplo, da casa da pintora, dando um tom ainda mais terreno a este santo.
Outro dos elementos que vemos atrás do santo é uma cruz, neste caso uma “Cruz de Lorena, símbolo centenar de libertação e luta contra qualquer jugo adoptada precisamente em 1902 como símbolo internacional da cruzada contra a tuberculose.”***
Este objecto é uma das peças que situa a obra aqui analisada em 1902, mas também que leva muitos a crer que permite de igual modo confirmar que a pintora portuguesa sofreu de tuberculose.

Santo António apresenta-se com uma paleta escura e bastante uniforme em tons de castanho e bege, que nos surge em modo inacabado, algo que se acredita estar relacionado com o facto da pintora descobrir que Santo António depreciava as mulheres. No entanto, a obra está assinada o que leva a crer que Aurélia a considerou terminada.
A parte inferior da obra é a mais escura, sendo que a luz incide do lado esquerdo em cima, tal como vemos normalmente o foco nas figuras religiosas. Esta luz torna o rosto de Aurélia fácil de perceber e ler e torna o manto franciscano que veste em algo que vai perdendo a sua forma quanto mais para baixo olhamos: há um cordão que acentua a cintura da artista e que torna a veste mais larga na zona superior do seu corpo; da cintura para baixo tem já pouco detalhe, sendo, ainda assim, visíveis alguns vincos marcados no tecido. As mangas largas deixam ver os pulsos de Aurélia.
Mesmo tendo Aurélia de Sousa removido alguns dos elementos característicos de Santo António, não deixou de parte a auréola, a qual surge sobretudo a castanho, confundindo-se com a restante paleta cromática da obra.

É uma tela de pincelada forte que podemos perceber não só na parede que cobre o fundo e as laterais da obra, mas também na veste que Aurélia enverga e também nas suas mãos e face.
A cruz e os livros acima mencionados, embora consigamos perceber sem problema o que são, surgem como apontamento, não revelando um trabalho detalhado na sua criação.

Aurélia de Souza, Santo António (detalhe), c. 1902, óleo sobre tela, Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio/Câmara Municipal do Porto.

Aurélia de Souza, Santo António (detalhe), c. 1902, óleo sobre tela, Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio/Câmara Municipal do Porto.

E fotografa. Quer para preencher os álbuns de família, quer para a auxiliar na sua pintura, quer como “prática artística”, num estilo “pictorialista”, que repercute na nova arte preocupações próprias da pintura**.

A Fotografia foi outra das suas paixões e Aurélia utilizou-a como prática artística, mas também como base de trabalho para as suas pinturas, algo que aconteceu com Santo António.
Há poucos anos, foram expostas em público pela primeira vez imagens da artista envergando uma túnica e a testar poses para este dito auto-retrato como Santo António. Estas fotografias mostram-nos, assim, que este quadro foi um trabalho ponderado.
As imagens preparatórias mostram a artista em duas poses distintas: na versão escolhida, a mão direita de Aurélia ergue-se em frente como que a tentar alcançar o observador, enquanto a mão esquerda pousa no peito – numa ilusão que faz até parecer que as mãos se juntam em oração; a fotografia que a artista não escolheu mostra a sua mão direita sobre o peito, enquanto a mão esquerda se move em direcção à cruz.

Aurélia de Souza, Estudo para Santo António, c. 1902, fotografia. Colecção José Caiado de Souza. Fonte: GoogleArts&Culture.

Considerada um dos mais importantes artistas portugueses de 1900 por se mostrar estar à altura dos seus contemporâneos, Aurélia de Souza foi uma artista na vanguarda da sua época e levou uma vida pouco convencional, algo que a sua obra seguiu também.

O proximArte presta-lhe assim, mais uma vez, homenagem, no dia do seu 157º aniversário, mostrando-a como a própria se representou por esta data coincidir com o Dia de Santo António.

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Referências:
Duarte, Adelaide, Aurélia de Sousa – Pintores Portugueses, QuidNovi, 2010*;
JornalismoPortoNet – “Vida e Segredo”: exposição marca os 100 anos do desaparecimento de Aurélia de Souza;
Porto – Histórias da cidade: Aurélia de Sousa, a mulher artista na vanguarda da sua época;
Público – Aurélia de Sousa: a consagração de uma pintora, a descoberta de uma fotógrafa**;
Repositório Aberto – Aurélia de Souza: Pelo Brilho da Penumbra***.

Um pensamento sobre “Santo António, de Aurélia de Souza

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