Noite de São João no Jardim da Quinta da China, de Aurélia de Souza

Chegado o dia 24 de Junho, é altura de celebrar o São João. Mais uma vez, podia fazê-lo por aqui com recurso a obras religiosas, mas o caminho escolhido é outro.
Tal como aconteceu com o Santo António, a obra selecionada para assinalar este dia saiu das mãos da pintora Aurélia de Souza; tendo ela vivido no Porto durante quase toda a sua vida, não é de estranhar que haja uma pintura com esta temática no seu espólio.

Aurélia de Souza, Noite de São João no Jardim da Quinta da China, óleo sobre tela, 1908. Colecção privada.

A Quinta da China, principal morada da pintora até ao dia da sua morte, será o centro de tudo o que rodeia Aurélia de Souza (1866-1922), seja a nível pessoal, familiar, mas também artístico/profissional. Para lá se mudou em 1869 com os pais e as cinco irmãs, tendo uma infância tranquila. Uma quinta com vista privilegiada sobre o Rio Douro e Vila Nova de Gaia, comprada pelos pais de Aurélia, António Martins de Sousa e Olinda Perez, que se deixaram conquistar pela sua beleza e as vistas proporcionadas pelas varandas.

A Quinta da China, na qual se erguia uma mansão do século XVIII, circunscrevia um parque verdejante, beneficiando de vistas desafogadas sobre o rio Douro. O lugar foi conhecido como “uma das mais recatadas e ricas residências da cidade, rodeada por um frondoso parque, do qual se colhem também formosas perspectivas do grandioso cenário do rio”.*

Depois de uma temporada a estudar por Paris, Aurélia e a irmã Sofia de Souza (1870-1960) voltaram a Portugal, em 1901, e na Quinta da China montaram os seus ateliers. Era também lá que viviam em família, dividindo-se entre os afazeres domésticos e a prática artística, que muitas vezes se assumia como uma autêntica devoção: Aurélia percorria a Quinta para pintar e dela podemos ver vários espaços nas suas obras.

A vivência silenciosa da natureza que ali foi desfrutando terá sido importante para sensibilizar o seu carácter e contributo decisivamente para a sua obra. De facto, o silêncio e o isolamento seriam condições tantas vezes reivindicadas pela artista no momento de pintar.*

Aurélia de Souza, Noite de São João no Jardim da Quinta da China (detalhe), óleo sobre tela, 1908. Colecção privada.

O estilo artístico de Aurélia é próprio e singular. Percebemos que não abdicou da estética Naturalista ao mesmo tempo que se nota o seu conhecimento do Pós-Impressionismo e do Simbolismo. Observam-se ainda alguns traços de modernidade. No fundo, o seu trabalho é uma confluência entre o que aprendeu nas Academias portuense e parisiense e o que viu artisticamente nas várias viagens que fez, tendo registado influências oriundas sobretudos das escolas espanhola e holandesa.

A obra de Aurélia manifesta-se por características muito pessoais. A casa, o jardim, toda a Quinta da China e o espaço familiar são os aspectos principais do seu trabalho artístico, resultando em telas com ambientes de grande intimismo e serena quietude. A pintora registava sobretudo a mãe, a avó, as irmãs e as crianças da família a realizar várias tarefas, desde os trabalhos domésticos desempenhados ao longo do dia, mas também momentos de lazer que incluíam a leitura, o bordado e horas da sesta.
Estas cenas de quotidiano de interior e exterior são uma das grandes temáticas da sua pintura e é muito comum vermos os recantos da casa e do jardim serem representados de forma tão importante quanto as pessoas, o que nos mostra a importância que Aurélia atribuía à representação dos ambientes.

(…) regista a silenciosa narrativa da casa: a presença da velha mãe, os afazeres das mulheres e das crianças, os cantos escuros da cozinha e do atelier, as tardes em que a luz se confunde com os fatos de Verão, os caminhos campestres ou as vistas do rio. Pratica uma pintura vigorosa, raramente volumétrica, detida na análise das sombras para nelas captar a luz.

-Raquel Henriques da Silva***

Aurélia de Souza, Noite de São João no Jardim da Quinta da China (detalhe), óleo sobre tela, 1908. Colecção privada.

Essa é exactamente uma das características que podemos atribuir a esta obra Noite de São João no Jardim da Quinta da China.

Ao centro, no primeiro plano da obra, vemos um rapaz vestido com um fato de marujo (um sinal burguês, típico das obras da pintora portuguesa e que coincide com a sua situação familiar) que está absorto do que o rodeia, enquanto brinca com balões de São João. Não percebemos, no entanto, se os está a montar ou a demonstrar e isso contribui para a carga misteriosa que vemos pautar algumas das obras de Aurélia de Souza. Atrás do menino, há um aglomerado de pedras que sobressaem pela sua junção a um arbusto florido.
A acção desenrola-se, tal como indica o título atribuído (o título original da obra é desconhecido), no jardim da Quinta da China, o qual vemos ornamentado para os festejos de São João. Todo o fundo é composto por árvores que conferem a tal tranquilidade e intimismo ao jardim da Quinta.

Qualquer que seja o momento aqui fixado (antecipação ou fim da festa), nesta pintura convergem alguns aspectos fundamentais de toda a obra de Aurélia de Souza: um forte sentimento de lugar (a cidade representada através de uma festividade identitária e a casa e jardins que a artista longa e intensamente habitou), uma avidez por tudo o que a rodeia enquanto potencial tema para a pintura e uma melancolia que parece imanente, inevitável ao ponto de se manifestar até no seu olhar sobre a vivência infantil de uma festa.**

Aurélia de Souza, Noite de São João no Jardim da Quinta da China (detalhe), óleo sobre tela, 1908. Colecção privada.

Aurélia de Souza, Noite de São João no Jardim da Quinta da China (detalhe), óleo sobre tela, 1908. Colecção privada.

Tal como mencionado, esta obra, exposta recentemente numa exposição que o Museu Nacional de Soares dos Reis dedicou à artista, mostra uma personagem masculina, ao contrário do que é comum nas pinturas de Aurélia de Souza que se focam maioritariamente em retratar mulheres ou raparigas.
As suas obras têm um toque andrógeno, sendo que as figuras femininas que pinta não trespassam a fragilidade que normalmente vemos associada ao universo da mulher. No entanto, este rapaz retratado na obra aqui em análise parece transparecer, em certa medida, esse lado mais frágil.

Vemos, como seria de esperar, um intimismo e tranquilidade, reforçados pelo arvoredo que circunscreve a composição central. O menino parece dialogar com a natureza; parece ser parte dela. Há ainda uma tranquilidade que resulta da harmonia de cores, a qual faz referência a uma estética Impressionista.

Aurélia de Souza, Noite de São João no Jardim da Quinta da China (detalhe), óleo sobre tela, 1908. Colecção privada.

Desde sempre, tal como indicam memórias sobre a sua infância, Aurélia de Souza revelou sensibilidade para sentir a luz, a cor e a forma; elementos sobre os quais vemos girar a sua obra, acompanhando, assim, a sua carreira artística e a pesquisa que a própria artista foi realizando de modo a evoluir no seu trabalho
Denota-se um gosto pela expressividade das cores puras, como o branco do fato que contrasta com o verde do jardim e os pontos coloridos que são os enfeites da festa. Ainda assim, vemos como a artista submete a cor à influência da luz: os ditos balões assumem-se cheios de luz por receberem os raios de sol; enquanto o branco do fato do menino já está numa zona de sombra, sendo um ponto branco não tão estridente como seria de esperar.
Esse jogo de luz e sombra, providenciadas pelo sol, causam ainda uma diferença na pureza das cores dos enfeites: aqueles que vemos pendurados são manchas e pontos bastante brilhantes, mas os que estão ao lado do menino são mais escuros. As cores escolhidas para estes balões de papel adequam-se à atmosfera da natureza que os recebe: verde, vermelho, laranja, amarelo, branco e um ou outro toque de roxo.

É muito comum as telas de artista portuguesa mostrarem um predomínio da mancha colorida sobre o desenho; um cromatismo que se sobrepõe ao recorte das formas. E isso vemos também em Noite de São João no Jardim da Quinta da China. Vemos que é dada uma grande atenção à mancha: as flores percebem-se como tal, mas não têm detalhes, tal como não os vemos nas folhas das árvores; mesmo o fato que o menino veste não mostra pormenor (exceptuando no já referido tratamento da luz e da sombra). Os enfeites que pontuam sobretudo o meio da composição são os pontos que revelam uma maior preocupação, apenas porque há o cuidado de lhes dar várias linhas de cor de forma a torná-los um elemento mais divertido e não tão sóbrio; criam também uma textura lisa que choca com as da vegetação presente.

Aurélia de Souza, Noite de São João no Jardim da Quinta da China (detalhe), óleo sobre tela, 1908. Colecção privada.

Seja um momento de preparação de festa ou algo já saudoso que obriga a arrumar todos os enfeites da festa que se diz ter a noite mais longa do ano, o que é certo é que Noite de São João no Jardim da Quinta da China engloba várias das características principais do trabalho de Aurélia de Souza, incluindo a pouca atenção que, neste tipo de obra, dá a registar as feições das figuras representadas, sendo mais importante a atmosfera sentida e o ambiente que recebe as personagens.
Ao olhar para esta tela, sentimos um pouco do seu mundo familiar e intimista, bem como a devoção que tinha pela pintura, aproveitando praticamente tudo o que via como tema possível de transpôr para tela; e o São João é um tema tão bom como qualquer outro.

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Referências:
Duarte, Adelaide, Aurélia de Sousa – Pintores Portugueses, QuidNovi, 2010*;
Agenda Cultural do Porto – Peça do mês – Pintura Noite de São João no Jardim da Quinta da China**;
ETC e Tal – As Antigas Quintas do Bonfim (05) – Quinta da China;
Porto. – Histórias da cidade: Aurélia de Sousa, a mulher artista na vanguarda da sua época***.

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